A DEMOCRACIA COMO FERRAMENTA PARA UMA DECISÃO JUSTA – ENTRE HABERMAS E DWORKIN
DEMOCRACY AS A TOOL FOR A FAIR DECISION – BETWEEN HABERMAS AND DWORKIN
Artigo recebido em 03/12/2021
Aceito para publicação em 17/12/2021
Luiz Reinaldo Capeletti
Mestrando em Direito pelo Centro Universitário Salesiano de São Paulo. Especialista em mProcesso Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Advogado.
José Marcos Miné Vanzella
Professor do Programa de Mestrado em Direito do Centro Universitário Salesiano de São Paulo. Doutor em filosofia pela Universidade Gama Filho.
RESUMO: O presente artigo, com metodologia de pesquisa bibliográfica, normativa e de análise de decisão judicial, visa expor a judicialização da política e a politização da justiça, para a partir das teorias de Ronald Dworkin e Jürgen Habermas, abordar métodos e caminhos para o aprimoramento da jurisdição constitucional e das decisões em âmbito judicial. As abordagens aqui propostas visam uma compreensão da integralidade do direito e através de sua reconstrução avaliar as cargas emocionais e valorativas do juiz quando da decisão,
buscando, dentro de um viés democrático, reduzir a carga da pessoa do juiz e melhorar este ambiente da decisão.
ABSTRACT: The present article, with bibliographic, normative and judicial decision analysis methodology, objective to expose the judicialization of politics and the politicization of justice, to approach methods and paths for the improvement of justice, based on the theories of Ronald Dworkin and Jürgen Habermas, constitutional jurisdiction and judicial decisions. The approaches proposed here objective to understand the integrality of law and, through its reconstruction, assess the judge’s emotional and evaluative burdens when making a decision, seeking, within a democratic bias, to reduce the burden of the judge’s person and improve this decision environment.
SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 Judicialização da política e a politização da justiça. 3 A racionalidade construtiva – Ronald Dworkin. 4 Teoria discursiva da jurisdição – Habermas. 5 Uma perspectiva da decisão no Brasil. Conclusão. Referências
1 INTRODUÇÃO
Em tempos de debates políticos acirrados, questionamentos às decisões das supremas cortes baseados em opiniões, sem nenhum embasamento objetivo de provas, têm se tornado prática constante e adversa a ordem do Estado democrático de Direito. Por outro lado, também, parece ser grave, decisões de juízes e cortes baseadas em valores pessoais. Os desvios da técnica associados a propaganda política adversa, tornam mais frágeis as decisões jurídicas, a democracia e a ordem constitucional do Estado democrático de Direito.
O objetivo deste artigo é, a partir da compreensão do fenômeno duplo da judicialização da política e da politização da justiça, repisar alguns fundamentos jurídicos filosóficos, de Dworkin e Habermas, para mediante a análise e crítica acadêmica de decisões do Supremo tribunal federal, disponibilizar aos interessados cognitivamente teorias mais resistentes a politização e particularização do judiciário. O trabalho insere-se desse modo como uma singela contribuição com a questão do aprimoramento da magistratura e judiciário, na linha de pesquisa dos fundamentos do Estado democrático de Direito. A questão que se coloca é, as concepções deontológicas de Dworkin e Habermas, podem fornecer critérios epistêmicos para evitar que o discurso de fundamentação jurídica caia nas armadilhas da politização e valoração particular e subjetiva, contribuindo para o aprimoramento da jurisdição?
Apresenta-se por tanto um breve quadro diagnóstico do duplo problema da necessária judicialização da política e da perigosa politização da justiça. Aborda-se na sequência os traços da teoria de Dworkin. Em seguida faz-se a exposição da concepção de Habermas comparando-a com outras teorias especialmente a de Dworkin. Por fim, faz-se a análise de alguns julgados do STF.
Trata-se de esclarecer e restabelecer conceitos da argumentação jurídica das decisões, fundando-se no pensamento destes autores, a fim colaborar com o pensamento jurídico, principalmente no que tangem as decisões judiciais. A ideia é buscar limitações para as más interpretações da subjetividade das decisões e reforçar a ideia de racionalidade das decisões como sendo uma razão democrática. A abordagem será uma construção técnica jurídica de argumentação buscando um viés na tomada de decisão onde se reduziria o juízo de valor particular da decisão inserido na pessoa do juiz.
2 JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E A POLITIZAÇÃO DA JUSTIÇA
O contexto que se vive no Brasil, apresenta esse fenômeno duplo, da judicialização da política e da politização da justiça que traz inequívocos problemas para a democracia. Em primeiro lugar cabe ressaltar que certa judicialização da política é constitutiva do próprio Estado democrático de direito. Como afirma Raíssa S. R. Creado:
Afora a expansão da atividade jurisdicional e o papel ativo da magistratura na agenda pública, a prerrogativa de efetivação do controle de constitucionalidade das normas fez com que o Judiciário se tornasse um receptáculo das insatisfações políticas, simultaneamente o alçando à basilar
posição de guardião da Constituição Federal e dos direitos e valores fundamentais republicanos – ante a incapacidade estatal de prover muitos dos serviços básicos, o Judiciário acaba constituindo a esperança última de alguma justiça e racionalidade. (2020, p. 95).
O recurso à justiça, o controle de constitucionalidade são elementos indispensáveis ao ordenamento jurídico, que atentam aos direitos e garantias fundamentais, bem como à preservação das regras fundamentais do jogo, contra maiorias tirânicas.
A Constituição da República Federativa do Brasil atribui à magistratura uma função ativa no processo de afirmação da cidadania e da justiça substantiva. Por esse motivo Bonavides afirma:
Um tribunal carente de independência, politizado ao excesso pelo Executivo,
fragilizado pelo desrespeito à sua função, debilitado pelas omissões no
controle jurisdicional de constitucionalidade é o inimigo da Constituição;
[…] (BONAVIDES, 2004, p. 141).
Deve-se distinguir dois tipos de politização da justiça, aquela que prove de seu papel constitucional, e aquela mencionada por Bonavides que diz respeito a subserviência e ao “aparelhamento” provindo do executivo. Como afirma Teixeira: “estamos diante de uma confusão conceitual e funcional entre Direito e política” (TEIXEIRA, 2012, p. 42). Num esforço de aclarar essa distinção conceitual afirma-se “na política vigoram a soberania popular e o princípio majoritário. O domínio da vontade. No direito, vigora o primado da lei (the rule of law) e do respeito aos direitos fundamentais” (BARROSO, 2012, p. 16). A essa distinção pode-se acrescentar o comentário: “a postura legalista, lícita e normativamente adequada do juiz, independente de quem seja e a quem esteja julgando, jamais deve mudar em razão de qualquer eventual circunstância ou pretexto”. (2020, p. 100). Por este motivo juízes são independentes da política, na medida em que aplicam critérios aceitos pela comunidade jurídica.
O aprimoramento destes critérios que garantem essa independência é objeto da reflexão tanto de Dworkin como de Habermas. Isso será abordado nos itens que seguem, após apresentarmos os riscos de subversão da democracia.
Do lado da subversão da democracia que instrumentaliza a justiça, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt fazem importantes considerações em seu livro “Como as Democracias Morrem” (2018). Eles demonstram com vários exemplos históricos que: candidatos a ditadores tendem a rejeitar, violar ou suspender a constituição, questionar e até cancelar eleições, negam a legitimidade dos oponentes políticos, toleram e até encorajam à violência, além de estarem propenso a restringir as liberdades civis inclusive a mídia. (p. 65 et seq.) Para atingir seus objetivos autoritários e subverter a democracia é fundamental a captura das instituições judiciárias e policiais. Por isso os autores escrevem:
Para autoritários potenciais, as instituições judiciárias e policiais representam, assim, tanto um desafio quanto uma oportunidade. Se elas permanecem independentes, têm a capacidade de denunciar e punir abusos governamentais. Este é o trabalho do árbitro, impedir fraudes. Não obstante, se controladas por sectários, essas instituições podem servir aos objetivos do aspirante a ditador, protegendo o governo de investigações e processos criminais que possam levar ao seu afastamento do poder. O presidente pode infringir a lei, ameaçar direitos civis e até violar a Constituição sem ter que se preocupar com a possibilidade de tais abusos serem investigados ou censurados. Com tribunais cooptados mediante a alteração de sua composição e autoridades policiais rendidas, os governos podem agir com impunidade. (LEVITSKY & ZIBLAT, 2018, p.81-82).
Vê-se que as investidas e campanhas contra os ministros Alexandre de Morais e Barroso e contra o próprio Supremo Tribunal Federal, inclusive a prevista para sete de setembro de 2021, possuem claro alinhamento com as pretensões de impunidade, fraude e violação de direitos constitucionais em função dos processos que já tramitam naquela casa e que por ventura virão a tramitar após a Comissão Parlamentar de Inquérito que investiga as ações e omissões do governo no enfrentamento da pandemia causada pelo COVID-19. Vê-se
também com os autores que: “Juízes incorruptíveis podem ser visados para impeachment” […] “Governos incapazes de afastar juízes independentes podem contorná-los através de mudanças na composição da corte” (LEVITSKY & ZIBLAT, 2018, p. 83). Não resta dúvidas que essas tentativas entraram em pauta na agenda política brasileira.
Também há formas discretas de capturar árbitros nas instâncias da máquina pública através de demissão de servidores civis e outros funcionários independentes. Como afirmam os autores: “[…] os autocrátas contemporâneos tendem a esconder sua repressão debaixo de um verniz de legalidade. É por isso que capturar os árbitros é tão importante” (LEVITSKY & ZIBLAT, 2018, p. 86).
Neste sentido foi amplamente noticiado o caso do juiz Sergio Moro, o qual após ter contribuído para a exclusão do principal concorrente do atual presidente nas eleições, recebeu o cargo de ministro da justiça e a promessa de indicação para o Supremo tribunal Federal. Como se verá a adiante o STF julgou Sérgio Moro suspeito, no caso do “Triplex do Guarujá”, por ter agido com parcialidade. Entende-se que no Brasil há uma certa “captura política” de árbitros nas instâncias da máquina pública, apesar de o Supremo tribunal federal resistir à várias investidas do atual governo.
Porém, advertir-se: o que está em jogo é o que essas ações visam em seu conjunto: “Para demagogos cercados por restrições constitucionais, uma crise representa uma oportunidade para começar a desmantelar o inconveniente e às vezes ameaçador sistema de freios e contrapesos que vem com a política democrática” (LEVITSKY & ZIBLAT, 2018, p.98).
Deve ficar claro que a questão fundamental em jogo é a preservação do Estado democrático de direito e o papel de um judiciário independente. Para tal, entende-se que a jurisdição constitucional precisa ser aprimorada. As críticas fundamentações de decisões de ministros visam seu aprimoramento, para torná-las mais apropriadas a sua função constitucional e resistentes aos ataques dos demagogos de plantão.
3 A RACIONALIDADE CONSTRUTIVA – RONALD DWORKIN
Neste item, aborda-se a questão da racionalidade construtiva no pensamento de Ronald Dworkin, com o objetivo de proporcionar elementos teóricos para analisar a jurisdição constitucional.
Quando em nosso contexto, se questiona a constituição, por interesses estratégicos, políticos e econômicos. Inicialmente convêm lembrar com Vera Karam de Chueiri e Joanna Maria de Araújo Sampaio que: […] o papel do direito e dos direitos em uma sociedade complexa como a brasileira é afirmar, como o faz Dworkin para a sociedade norte-americana, que só há democracia porque há constitucionalismo e vice-e-versa […] (2009, p.65).
Ao sustentar sobre o direito, especificamente sobre processos judiciais, Ronald Dworkin elabora sua teoria abordando que:
Os processos judiciais sempre suscitam, pelo menos em princípio, três diferentes tipos de questões: questões de fato, questões de direito e as questões interligadas de moralidade política e fidelidade. (DWORKIN, 2007,
p. 5-6).
Canalizando seu pensamento para a tomada de decisões, ele compara a interpretação dos juízes nas práticas jurídicas em relação às decisões em processos difíceis (hard cases), ou seja, aborda questionamentos relacionados às formas de interpretação destes casos. Dworkin afirma que a grande problemática à qual a interpretação jurídica está exposta, é no momento em que a previsão legal não possua dispositivo que possa ser aplicado diretamente ao caso sob julgamento, mas em casos difíceis que exigem do juiz uma interpretação que deve considerar a intenção do legislador, pautadas em princípios que norteiem o julgador.
É fundamental destacar que dentro deste espectro interpretativo do juiz, não há espaço para discricionariedades que extrapolem a análise pautada nestes princípios e no que a lei pretendeu, ou seja, não pode o juiz apoiar-se em convicções que não sejam decorrentes dos princípios que norteiem esta correta interpretação.
Em relação aos casos difíceis, após analisar princípios democráticos e políticos inerentes à cognição do juiz ao julgar, o autor explica que, em relação à teoria do direito especificamente:
Encontramos uma razão adicional em um conhecido problema na teoria do
direito. Os juristas acreditam que, quando os juízos criam novas leis, suas
decisões são fortemente influenciadas por tradições jurídicas, apesar de
serem, não obstante a isso, pessoais e originais. Diz-se que as novas decisões
refletem a moralidade política do próprio juiz, mas que refletem igualmente
a moralidade que se acha inscrita nas tradições do direito costumeiro, quem
bem podem ser diferentes. Isso nada mais é, por certo, que retórica de
escolas de direito, mas ainda assim coloca o problema de explicar como
essas diferentes contribuições à decisão de um caso difícil podem ser
identificadas e conciliadas. (DWORKIN, 2002, p. 135).
Partindo desta base de pensamento – bastante aprofundada e discutida em seus escritos – Dworkin cria a metáfora da figura do juiz Hércules, o qual, com conhecimentos jurídicos e morais abrangentes, está apto a solucionar essas questões jurídicas de grande complexidade:
Podemos, portanto, examinar de que modo um juiz filósofo poderia desenvolver, nos casos apropriados, teorias sobre aquilo que a intenção legislativa e os princípios jurídicos requerem. Descobriremos que ele formula essas teorias da mesma maneira que um árbitro filosófico construiria as características de um jogo. Para esse fim, eu inventei um jurista de capacidade, sabedoria, paciência e sagacidade sobre-humanas, a quem chamarei de Hércules. Eu suponho que Hércules seja juiz de alguma jurisdição norte-americana representativa. Considero que ele aceita as principais regras não controversas que constituem e regem o direito em sua jurisdição. Em outras palavras, ele aceita que as leis têm esse poder geral de criar e extinguir direitos jurídicos, ou que os juízes têm o dever geral de seguir as decisões anteriores de seu tribunal ou dos tribunais superiores cujo fundamento racional (rationale), como dizem os juristas aplica-se ao caso em juízo. (DWORKIN, 2002, p. 165).
Na mitologia grega, Hércules era filho de Alcmena, a mais bonita, alta e sábia dos mortais. Zeus a enganou assumindo a forma de seu marido, Anfitrião, e nesta farsa a engravidou gerando Hércules. Este, por sua vez, filho de um Deus e uma mortal, foi ignorado por seu pai, mas criado por Anfitrião, marido de Alcmena. Hera, Deusa e esposa de Zeus, tomada por ciúmes, colocou duas serpentes no berço de Hércules, mas este, ainda bebê, porém já grande e com uma força descomunal, estrangulou ambas as serpentes. Hércules foi ainda perseguido por Hera por muito tempo, mas, superando diversos desafios impossíveis à um mortal, teve sua redenção. (WILLUNSON, 2018).
Essa criação de Dworkin, consubstanciada no personagem de Hércules da mitologia grega, vem para tentar solucionar o cenário complicado em casos difíceis quando da decisão de um juiz dentro da argumentação jurídica que, com a capacidade do juiz Hércules, é possível julgar essas causas sem um poder discricionário que extrapole os princípios que devem nortear essa apreciação. Ao desenvolver seu pensamento, ele aborda diversas questões interpretativas, como a equidade, histórico legislativo, integridade do texto da lei, intenções do legislador etc., que ele chama de visão do locutor, mas em síntese, ao utilizar um caso difícil americano como exemplo (o caso do snail darter)¹, o autor expõe:
Ele tenta apresentar um exemplo de história social – o relato de uma
legislatura democraticamente eleita que elabora um texto particular em
circunstâncias particulares – sob a melhor luz geral possível, o que significa
que sua descrição deve explicar o relato como um todo, não apenas o seu
final. Logo, sua interpretação deve refletir não apenas suas convicções sobre
a justiça e sobre o que é uma política de preservação inteligente – embora
estas também tenham um papel a desempenhar – mas também, suas
convicções sobre os ideais de integridade e eqüidade políticas e de devido
processo legal, na medida em que estes se aplicam especificamente à
legislação em uma democracia. (DWORKIN, 1999, p. 405).
¹Em 1973 o Congresso dos EUA promulgou a Lei das Espécies Ameaçadas, que autoriza o Ministro do Interior a designar quais espécies estariam correndo risco de desaparecer, e exige que órgãos do governa tomem medidas necessárias para a preservação. Havia uma barragem sendo construída no Tennessee e havia o argumento de que essa barragem alterava a geografia do local. Esse impacto ameaçava destruir o único habitat de uma espécie de peixe nativa, o snail dater (um peixe sem muito valor de 7,5 centímetros). Por outro lado, já havia gasto mais de 100 milhões de dólares na barragem. E a questão é: interrompe-se uma obra que já consumiu essa quantia financeira e garante a preservação da espécie, ou não perde todo esse dinheiro, mas a coloca em risco? Com este hard case Dworkin avalia como seria um julgamento do juiz Hércules (DWORKIN, 1999, p.25 a 29).
A teoria do direito como integridade, proposta por Dworkin oferece uma alternativa, afirmando que sempre haverá uma resposta correta à questão da melhor interpretação do direito. Porém como afirmam Adriana Campos e Daniel Piovanelli:
Como se viu, não cabe ao intérprete ir além das limitações que as possibilidades do conhecimento e do que o discurso lhe impõem. Ele deve decidir, mas sua decisão não deve ser subsidiada por crenças infundadas ou puramente morais. Ela deve se embasar na mais clara convicção de que a interpretação dada apresenta o direito da comunidade personificada do melhor modo, coordenando seus ideais políticos à luz da integridade. (2013, 273-274).
Nesse diapasão, Habermas, ao explicar o juiz Hércules de Dworkin, esclarece:
O “juiz Hércules” dispõe de dois componentes de um saber ideal: ele conhece todos os princípios e objetivos válidos que são necessários para a justificação; ao mesmo tempo, ele tem uma visão completa sobre o tecido cerrado dos elementos do direito vigente que ele encontra diante de si, ligados através de fios argumentativos. (HABERMAS, 2003, p. 263).
A ideia de Dworkin é a construção teórica do direito onde os princípios jurídicos juntamente com as regras já estabelecidas pelo legislador, incluindo o contexto, a intenção deste, a equidade, integridade do texto da lei, etc., permitem que seja realizada uma aplicação legal satisfatória. Essa aplicação fica adstrita à atuação deste juiz Hércules, o qual consegue lidar com os questionamentos principiológicos que derivam do próprio ambiente jurídico a partir de seu contexto hermenêutico, o qual, por sua vez, está em grande parte das vezes exposto à perspectiva política da sociedade. Porém, como dito sob a ótica da integridade do direito, o juiz trata de julgar conforme os ideais políticos da comunidade personificada do direito.
4 TEORIA DISCURSIVA DA JURISDIÇÃO – HABERMAS
Neste item aborda-se a teoria da jurisdição de Habermas, porém, para melhor compreendê-la, é importante entender que ela faz parte de um movimento de fundo descrito em sua Teoria do agir comunicativo, na qual ele também aborda o fenômeno da “juridificação”. Sua compreensão é prévia à discussão da jurisdição.
Ele afirma: “De modo geral a “juridificação” (Verrechttlichung) tem a ver com a tendência à multiplicação do direito escrito, difundida nas sociedades modernas”. (2012, p.641). Quanto mais as sociedades modernas se desenvolvem, tornam-se complexas, mais apresentam a necessidade de um direito escrito. Para Habermas “o princípio da legalidade da administração pode ser interpretado no sentido de um “império da lei” (2012, p. 646). Não por acaso título de um dos livros escritos por Dworkin.
Também com um significativo paralelo ao pensamento de Dworkin, que escreveu o “Levando os direitos a sério”, Habermas ainda afirma que:
O Estado social que se desenvolve no âmbito do Estado de direito democrático […] prolonga a linha de uma juridificação garantidora da liberdade. Na linha da constitucionalização e da democratização de um poder burocrático, […] revela-se o caráter das normalizações jurídicas inequivocamente voltadas à garantia da liberdade (2012, p. 648).
Estas breves notas são suficientes para entender a relação da jurisdição constitucional com a garantia dos direitos, liberdades dos cidadãos e as regras do jogo do Estado democrático de direito, em significativa conexão com o primeiro item deste artigo. Por óbvio, a busca da correta jurisdição é um importante elemento da efetivação dos direitos e do Estado democrático de direito.
Ao tratar sobre a teoria do discurso dentro do âmbito do direito, Habermas, antes de adentrar ao tema, explica a complexidade do direito dentro de um sistema de Estado. Ele aborda a indeterminação do direito fundamentando partindo da ideia de que a função política assume uma posição central. Mas, esclarece que o direito formalmente se manifesta nas esferas econômicas, sendo estas conduzidas por ele e emerge, apenas em casos de conflitos, em institutos como a família e a escola (HABERMAS, 2003).
Além disso, o autor explica ainda que:
Ao contrário da filosofia, a teoria do direito não pode desprezar os aspectos resultantes do nexo interno entre direito e poder político, principalmente a questão da permissão jurídica para o emprego da força legítima por parte do Estado. (HABERMAS, 2003, p. 244).
Considerando esta característica de abrangência do direito, ele reduz a discussão, para a aplicação da teoria do discurso apenas para o campo do processo judicial. Nas palavras dele, “[…] a escolha desta perspectiva de pesquisa significa apenas uma determinação metódica não uma restrição da análise do âmbito da Jurisdição” (HABERMAS, 2003, p. 244).
Pois bem, feito este esclarecimento, Habermas passa a analisar a dicotomia entre a facticidade e a validade que representam, respectivamente, segurança jurídica e decisões corretas. E é neste cenário que reside a problemática que ele busca solucionar com a teoria do discurso.
Dentro desta abrangência da questão por ele exposta, em seu pensamento para uma construção racional das decisões que não fuja ao texto legal, Habermas faz comparativos e críticas às três alternativas para as tomadas de decisão: a hermenêutica; o realismo; e o positivismo.
Quanto a hermenêutica, nas palavras do Professor Luiz Augusto Flórido:
Provindo do grego hermeneúen, a hermenêutica jurídica tem por finalidade o estado e a sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões contidas na forma jurídica, acolhendo, na elucubração cognociva, os postulados sociológicos que determinaram o aparecimento da regra que se interpreta. (FLÓRIDO, 1993, p. 5).
Como mencionado anteriormente, Dworkin também aborda o tema e, inclusive, faz comparações do juiz Hércules com Hermes, também da mitologia grega e que deu origem ao termo hermenêutica (DWORKIN, 1999).
Habermas, após apontar algumas virtudes relacionadas à hermenêutica em relação às outras teorias de aplicação da lei ao fato concreto, inicia sua crítica apontando que o ponto central desta metodologia reside na abrangência inerente à interpretação. Além disso, afirma que a interpretação por si deriva de uma pré-compreeensão daquele que aplica a lei, abrindo o horizonte para ulteriores relacionamentos. O autor defende que:
A hermenêutica tem uma posição própria no âmbito da teoria do direito, porque ela resolve o problema da racionalidade da jurisprudência através da inserção contextualista da razão no complexo histórico da tradição.
(HABERMAS, 2003, p. 248).
A compreensão através da hermenêutica é circular, ou seja, “[…] a racionalidade e de uma decisão deve medir-se […] pelos standards dos costumes, […] e pelas sabedorias tradicionais” (HABERMAS, 2003, p. 248), resultará naturalmente de uma compreensão própria do juiz e, portanto, eivada de opinião.
Quanto ao realismo, este método de tomada de decisão considera aspectos extrajurídicos e que são levados em consideração por parte do julgador quando da decisão. A decisão do julgador, com uma maior amplitude de interpretação que a hermenêutica, está eivada de influências históricas, culturais, políticas, econômicas etc. O que para esse julgador vale como topos, para outros podem ser mera ideologia (HABERMAS, 2003), neste ponto, a sentença pode ser “certa”, portanto a facticidade coloniza a validade.
Contudo, se for possível transcrever os processos jurídicos de decisão do mesmo modo que os processos de poder políticos, então não faz mais sentido o postulado segundo o qual a segurança do direito deve ser garantida através de decisões consistentes. A produção jurídica do passado perde seu domínio sobre decisões atuais, porque estas dependem amplamente da decisão do juiz. (HABERMAS, 2003, p. 249).
Objetivamente falando da crítica que Habermas faz ao realismo, o processo de decisão do juiz está exposto aos seus próprios sentimentos quando da tomada de decisão.
O positivismo aparece como um método que pode conduzir a uma decisão “errada”, sem validade, na linha das críticas expostas por Habermas na formação de seu pensamento.
Neste método, a ideia é atingir as expectativas na aplicação da lei, mas ao preço de romper com a validade por não abordar aspectos sociais vividos à época da decisão a ser tomada, levando em conta apenas as expectativas da época em que foi criada a lei a ser aplicada. Nas palavras de Jürgen Habermas “[…] a interpretação positivista da prática de decisão judicial faz com que, no final das contas a garantia da segurança jurídica eclipse a garantia da correção.” (HABERMAS, 2003, p. 251). Enfim, a aplicação estritamente legal, pode levar a uma decisão que, apesar de estar preenchida de segurança jurídica, pode ser errada.
Partindo destas três perspectivas de interpretação, Habermas passa a discorrer acerca da teoria do discurso jurídico. Ele inicia sua construção teórica já se opondo à figura de um juiz solitário e nesta perspectiva, que se enquadra na abordagem feita por Dworkin, e explica:
Pois o ponto de vista da integridade, sob o qual o juiz reconstrói racionalmente o direito vigente, é a expressão de uma ideia de Estado de direito que a jurisdição e o legislador político apenas tomam de empréstimo ao ato de fundação da constituição e da prática dos cidadãos que participam do processo constitucional. Dworkin oscila entre a perspectiva do cidadão que legitima os deveres judiciais e a perspectiva de um juiz que tem a pretensão de um privilégio cognitivo, apoiando-se apenas em si mesmo, no caso em que sua própria interpretação diverge de todas as outras. (HABERMAS, 2003, p. 276).
Sem excluir a ideia do juiz singular, Habermas estabelece seu pensamento de que a decisão proferida por este juiz deve contar com a participação de outros setores da sociedade (a própria sociedade em si) onde, dentro de um esforço coletivo comunicativo entre os cidadãos, a decisão possa caminhar para um âmbito mais acertado. Esclarecendo seu pensamento e comparando à figura do juiz Hércules de Dworkin, Habermas objetivamente afirma:
Essa observação indica a saída mais próxima do dilema que consiste em ter que fazer jus, de um lado, à falibilidade de construções teóricas pretenciosas, sem deixar de prestar a atenção, de outro lado, ao caráter profissional do processo de decisão judicial. Hércules poderia imaginar-se como parte de uma comunidade de interpretação de especialistas em direito e, neste caso, teria que orientar suas interpretações pelos standards da prática de interpretação reconhecidos na profissão. (HABERMAS, 2003, p. 279).
Sendo assim, Habermas defende um agir comunicativo social também nas decisões judiciais onde se estabelece como ambiente para a decisão a democracia em si. Há uma certa comunidade de intérpretes da constituição, que são todos os afetados por ela. Em tempo de normalidade democrática, porém, a sociedade delega à suprema corte e às demais instâncias seu papel de intérprete. O papel de intérprete, mesmo em primeira instância, quando não o fazem diretamente em colegiado, o fazem como um membro participante da comunidade dos intérpretes, com decisões sujeitas a revisão.
É muito importante entender como sua concepção reconstrutiva do direito distingue claramente entre normas e valores como ponto fundamental para o exercício da jurisdição constitucional. Segundo Habermas:
Portanto, normas e valores distinguem-se, em primeiro lugar, através de suas respectivas referências ao agir obrigatório ou teleológico; em segundo lugar, através da codificação binária ou gradual de sua pretensão de validade; em terceiro lugar, através de sua obrigatoriedade absoluta ou relativa e, em quarto lugar, através dos critérios aos quais o conjunto de sistemas de normas ou de valores deve satisfazer. (2003, p. 317).
Essa distinção é compartilhada por Habermas com o pensamento de Dworkin que também entende os direitos fundamentais como princípios deontológicos. Ambos se contrapõem a interpretação de Alexy que os considera princípios axiológicos.
Segundo Habermas a transformação conceitual dos direitos fundamentais em valores, resulta num mascaramento teleológico, pois “[…] normas e valores e valores assumem papéis diferentes na lógica da argumentação. (2003, p. 318) Segundo Habermas: “Os direitos fundacionais, ao contrário, ao serem levados a sério em seu sentido deontológico, não caem sob uma análise dos custos e vantagens”. (2003, p. 322). Assim, os direitos fundamentais têm o sentido deontológico de Mandamentos, não são simplesmente barganháveis. Por isso através da jurisdição constitucional: O tribunal constitucional deve proteger o sistema de direitos que possibilita a autonomia privada e pública dos cidadãos (2003, p. 326).
Porém, na interpretação de Habermas, o direito de uma comunidade em sintonia com princípios morais, não neutraliza o poder. Ele também entende que: “temos de nos despedir de uma imagem institucionalmente congelada do Estado democrático de direito”. (2014, p.88) Por esse motivo para ele: “a teoria do discurso atribui ao próprio procedimento da formação democrática da opinião e da vontade a força geradora de legitimidade” (2014, p.99). Seu procedimentalismo implica a possibilidade de revisar a constituição e a co-originalidade entre democracia e Estado de Direito.
Segundo Mônica Clarissa Hening Leal, uma outra comparação entre os autores pode exprimir-se nos termos seguintes:
Já para Habermas, por sua vez, não existem valores predefinidos e absolutos que possam ser “encontrados” ou “descobertos” pelo magistrado; antes pelo contrário, estes conteúdos precisam ser construídos, argumentativa e
discursivamente (ação comunicativa) no processo, daí a ideia de que a função primordial dos tribunais constitucionais é a garantia e a implementação de (os) procedimentos democráticos.
Do exposto fica claro, que Habermas acompanha a reconstrução da integridade do direito de Dworkin, mas a remete não ao solipsismo do juiz Hércules, mas sim a comunidade discursiva dos intérpretes do direito. Também acompanha o sentido normativo dos direitos fundamentais, mas não ao ponto de neutralizar o poder.
Enquanto Dworkin fala de fundamentos constitucionais estáveis desde a independência dos EUA, para Habermas, esses conteúdos são construídos argumentativa e discursivamente.
5 UMA PERSPECTIVA DA DECISÃO NO BRASIL
Como dito no início deste artigo, o Brasil tem vivido momentos de debates acirrados dentro do viés democrático onde, inclusive, muitas vezes a democracia é colocada em xeque.
A proposta aqui reside em brevemente abordar, dentro do tema, a construção do voto do Senhor Ministro Luís Roberto Barroso, ao julgar a “Ação Declaratória de Constitucionalidade 43 do Distrito Federal”, que decidiu sobre a possibilidade ou não da prisão em segunda instância. Em síntese, o tema sub judice basicamente tratou sobre a constitucionalidade da prisão após decisão em segunda instância e a presunção de inocência.
A curiosidade está na forma como ele fundamentou sua decisão, de maneira que ela é um bom exemplo para a abordagem a que se prepõe este artigo. Basicamente, o voto do Senhor Ministro é construído com premissas basilares que, nas palavras dele, se resumem a:
A prisão, nessas circunstâncias, justifica-se pela conjugação de três fundamentos jurídicos: (i) a ordem constitucional brasileira não exige trânsito em julgado para a decretação de prisão. O que se exige é ordem
escrita e fundamentada da autoridade competente (CF/1988, art. 5o, LVII e LXI); (ii) a presunção de inocência é um princípio, e não uma regra absoluta, que se aplique na modalidade tudo ou nada. Por ser um princípio, precisa ser ponderada com outros princípios e valores constitucionais. Ponderar é atribuir pesos a diferentes normas. Na medida em que o processo avança e se chega à condenação em 2o grau, o interesse social na efetividade mínima do sistema penal adquire maior peso que a presunção de inocência; (iii) depois da condenação em 2o grau, quando já não há mais dúvida acerca da autoria e da materialidade delitiva, nem cabe mais discutir fatos e provas, a execução da pena é uma exigência de ordem pública para a preservação da credibilidade da justiça. (ROVER, 2019).
Até aqui, em uma primeira análise, não há qualquer ressalva acerca da decisão do Ministro, uma vez que sua abordagem parte da premissa legal e, como dito, aqui não se vislumbra uma avaliação da justiça desta decisão, até mesmo porque, é o STF quem diz a interpretação mais apropriada da constituição.
O ponto sensível deste voto, dentro da proposta deste artigo, emerge quando o Senhor Ministro passa a fundamentar seu voto com base em números de processos que tramitam na justiça. Ao abordar essa questão, que ele, o Ministro, afirma ser uma abordagem mais pragmática, ele fundamenta:
Os fatos e os números obtidos a partir de pesquisa empírica idônea devem ser utilizados na construção de solução que produza as melhores consequências para a sociedade. Sendo assim, não é possível desconsiderar
que: (i) no Supremo Tribunal Federal, de um total de 25.707 recursos extraordinários julgados em matéria penal, somente em 1,12% deles houve decisão favorável ao réu, sendo que em apenas 0,035% dos casos ocorreu a absolvição; (ii) no Superior Tribunal de Justiça, de um total de 68.944 decisões proferidas em recursos especiais ou em agravos em recursos especiais, o percentual de absolvição não passou de 0,62%; (iii) num
intervalo de 2 anos, quase mil casos prescreveram no âmbito do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. 5. Além disso, de acordo com dados do Departamento Penitenciário, os índices de crescimento do nível de encarceramento sofreram redução após a decisão do Supremo Tribunal Federal que permitiu a execução da decisão condenatória após o 2º grau. (ROVER, 2019).
Apesar de parecer que os números corroboram com os fundamentos do Ministro e, ainda, de ele afirmar que essa é uma abordagem pragmática da questão, ao que parece que considerando o tema em si esses números formam. O sentido pragmático dos números se sobrepõe ao sentido deontológico da norma, num contexto de forte interesse político.
Ao tratar da quantidade de julgamentos, o Ministro carrega seu voto com questões que não dizem respeito ao tema “liberdade das pessoas”. O ambiente de realismo trazido com esses fundamentos, trazem uma carga para o voto do Ministro que parece entrar em um contexto de opinião. Isto fica ainda mais claro no decorrer do voto quando o Ministro afirma:
Eu tenho grande apreço pelas instituições. Inclusive pela instituição em que eu trabalho, que é o Supremo Tribunal Federal. Não tenho nenhuma ambição na vida que não seja fazer um país melhor e maior. Considero que instituições políticas e econômicas inclusivas, eficientes e responsivas à sociedade estão na origem da prosperidade das nações, fazendo coro ao que escreveram Daron Acemoglu e James Robinson em Por que as Nações Fracassam. Porque acredito nas instituições e tenho apreço pela instituição em que trabalho, preocupo-me com sua imagem e com a percepção que a sociedade tem do Supremo Tribunal Federal. E a sociedade questiona, porque não consegue compreender, o conjunto de decisões do Supremo que, a seu ver, dificultam o combate à corrupção. (ROVER, 2019).
A questão é que não se espera do poder jurisdicional, a opinião em conformidade com a opinião pública desinformada, mas sim um julgamento técnico de validade, um julgamento fundado na integridade deontológica do direito.
Outro julgado recente no Supremo Tribunal Federal foi a decisão monocrática proferida pelo Ministro Nunes Marques na ADPF 701, onde ele determinou que os Estados e Municípios se abstenham de editar normas que proíbam totalmente a realização de eventos religiosos em decorrência da COVID-19, bem como, autorizou o funcionamento desses cultos e reuniões com 25% da capacidade e desde que cumpridas as medidas sanitárias de prevenção.
É sabido que a pandemia causada pela COVID-19 gerou um contexto complexo de convivência social, resultando em um cenário de grandes dúvidas e de tomadas de decisões por parte de todas as instituições estatais. E é neste aspecto que o tema em comento ganha espaço.
Ao fundamentar sua decisão, que permitiu o funcionamento de cultos, missas, etc., o Ministro Nunes Marques assim entendeu:
Reconheço que o momento é de cautela, ante o contexto pandêmico que vivenciamos. Ainda assim, e justamente por vivermos em momentos tão difíceis, mais se faz necessário reconhecer a essencialidade da atividade religiosa, responsável, entre outras funções, por conferir acolhimento e conforto espiritual. (STF, 2021).
Com o devido respeito ao Ministro, atribuir essa carga comparativa para uma decisão que acarreta consequências tão significativas, deixa de ser algo de técnica jurídica e entra na esfera da opinião. Não se espera a opinião estatal acerca do tema, mas sim a aplicação da lei com o exercício das ferramentas processuais que possam dar à decisão a maior carga democrática possível.
Considerando a teoria do discurso de Habermas, a decisão, com um fundamento carregado de subjetividade, se contradiz com decisões já proferidas por aquela corte. Neste mesmo momento social vivido, o Plenário da Corte já entendeu a autonomia dos estados e municípios para a adoção de medidas de combate à pandemia (ADIn 6431 MC). Contradisse outra decisão da Corte que na ADPF 703 já havia declarado, por unanimidade, ser ilegítima a autora desta mesma ação (ANAJURE – Associação Nacional dos Juristas Evangélicos) para propositura deste tipo de demanda. Assim, ao proferir sua decisão, o Senhor Ministro parece não ter mantido a coerência do entendimento da corte. É neste momento que a proposta de Habermas visa justamente evitar que essa carga pessoal seja atribuída à decisão, evitando-se assim algo que se distancia da aplicação técnica da lei sob o pretexto de uma decisão justa dentro da amplitude axiológica do termo.
Uma decisão brasileira que ganhou grande repercussão e que reflete bem o quão grave é a carga interpretativa do julgador e que pode levar a erro, é a decisão do habeas corpus 164.493 do Paraná, que julgou a parcialidade do então juiz Sérgio Moro na Ação Penal 5046512-94.2016.4.04.7000/PR (referente ao triplex do Guarujá, do então réu Luiz Inácio Lula da Silva).
O extenso acórdão de relatoria do Ministro Edson Fachin, mas que teve como redator o Ministro Gilmar Mendes, fundamenta e relata bem o contexto fático do comportamento do juiz Moro na condução do referido processo e que levou a considerá-lo suspeito para o julgamento da ação penal movida contra Lula. No acórdão, os Ministros abordam os antecedentes da biografia de um juiz acusador e, além de outros pontos técnicos em relação ao habeas corpus em si, apontam 7 (sete) fatos que demonstram a parcialidade do juiz. Esses fatos são: (1) a espetaculosa condução coercitiva do investigado Lula que foi amplamente televisionada à época; (2) a quebra de sigilos bancários e telefônicos da família do investigado e, inclusive, de seus advogados; (3) a divulgação de interceptações telefônicas de conversas do investigado até mesmo com a presidência da República; (4) a atuação do magistrado, em 2018, no intuito de impedir o cumprimento da ordem de habeas corpus para a liberdade do ex presidente Lula; (5) ao julgar o caso do triplex, afirmar que as indagações da defesa visavam justamente criar o contexto da suspeição; (6) autorizar a inclusão nos autos do processo os depoimentos prestados por Antônio Palocci Filho, mesmo já finalizada a instrução das provas do processo e sem a devida ampla defesa; (7) e, ao final de tudo, a aceitação do magistrado do convite ao cargo de Ministro da Justiça.
O ponto de debate neste contexto, é justamente o grande esforço do juiz em conduzir o processo para a condenação do acusado utilizando-se de manobras autoritárias e que deixam claro a grande carga política depositadas nos atos por ele praticados, o que resultou em sua nomeação à Ministro da Justiça do Brasil.
Esse contexto resultou na anulação dos atos praticados por este juiz e o reflexo prático, naturalmente, foi uma grande insegurança jurídica e uma visível efervescência política no país.
CONCLUSÃO
No início deste trabalho levantou-se a questão, se as concepções deontológicas de Dworkin e Habermas, podem fornecer critérios epistêmicos para evitar que o discurso de fundamentação jurídica caia nas armadilhas da politização e valoração particular e subjetiva, contribuindo para o aprimoramento da jurisdição?
Primeiramente abordou-se em breve quadro a questão da judicialização da política e da politização do direito. Do exposto ficou claro que o fenômeno da judicialização da política está ligado ao próprio desenvolvimento do Estado democrático de Direito, que passa de Estado liberal para o Estado social, e tem um importante papel na efetivação de direitos fundamentais. Porém, como consequência têm-se a entrada do fenômeno da disputa política dentro do judiciário, produzindo o que se convencionou chamar a politização do judiciário, em que o judiciário, deixa seu lugar de árbitro para tomar parte na disputa política.
As abordagens de Dworkin e Habermas, trazidas neste artigo deixam claro que uma decisão acertada dentro do âmbito da jurisdição, não é algo simples.
O método da reconstrução da integralidade do direito de Dworkin, que funda e protege em seu conjunto principiológico o Estado Democrático de Direito e enaltece a pessoa do juiz “Hércules”, frente a uma ordem constitucional e moral substantiva, afirmando o sentido deontológico dos direitos fundamentais. Mostra-se apto a evitar a confusão axiológica e particularista, para dar legitimidade e segurança jurídica.
Por outro lado, também a teoria discursiva do direito de Habermas, aproveita-se da posição deontológica e reconstrutiva do direito de Dworkin, e remete a comunidade de argumentação jurídica, desenhada a partir de uma Estado Democrático de Direito compreendido de modo procedimental, que implica cooriginariamente direito e democracia, mostra-se capaz de fazer com muita clareza a distinção entre norma e valor. Desenvolvendo uma clara resistência cognitiva aos particularismos axiológicos e subjetivismos.
Partindo do fato da carga valorativa presente nas decisões abordadas se busca no processo evolutivo de uma sociedade, dentro do direito e, neste caso, das decisões judiciais, criar ferramentas e instrumentos que reduzam essa carga e, ao mesmo tempo, possam trazer tranquilidade e segurança quando da decisão. Neste caso as ferramentas dos autores indicados parecem ser as mais apropriadas.
No primeiro julgamento trazido, apesar de buscar números e fatores que aparentam trazer maior pragmatismo para a decisão, o tema central – nestes fundamentos especificamente – não foi abordado: a liberdade das pessoas. O princípio deontológico, acabou por concorrer com condições pragmáticas e axiológicas apresentadas através de dados estatísticos.
No segundo tema, apesar de ser também extremamente sensível sob o ponto de vista constitucional, o julgador deposita uma carga de opinião muito elevada na decisão. A pandemia que assolou o mundo, causando milhares de mortes, onde uma das medidas trazidas pela ciência para amenizar as consequências – o distanciamento social – foi colocado em cheque sob o argumento do exercício dos cultos. A questão que se coloca é até que ponto não predominou uma posição axiológica religiosa particular do julgador, que põe em risco não-
crentes em função do risco de disseminação da pandemia nos cultos e a posterior interação dos crentes com os demais membros da sociedade. Tal decisão é a decisão correta em vista da integridade do direito? Não seria mais prudente, antes de decidir, ouvir outros setores da sociedade (como sugere Habermas)?
A ideia que se propõe aqui é o aperfeiçoamento dos institutos jurídicos, estabelecendo e criando ferramentas no curso do processo. Fica claro que tanto Dworkin quanto Habermas, fornecer critérios epistêmicos para evitar que o discurso de fundamentação jurídica caia nas armadilhas valoração particular e subjetiva bem como na politização inadequada.
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